A realidade se apresenta de diversas formas. As vezes chega de fininho, como uma criança querendo dar um susto, mas as vezes ela se apresenta como uma girafa de gravata borboleta em uma festa infantil.
Acabei de acordar. Cheguei ontem da Nova Zelândia. De porta a porta foram 24h. Tempo suficiente para ver 3 filmes, terminar um curso e escrever uma carta para a Primeira Ministra neozelandesa, Jacinda Ardern.
O Duty Free dos três países – NZ, Chile e Brasil – sinalizou que um tempestade estava chegando. Em Auckland TUDO estava fechado, em Santiago só duas lojas funcionavam e em São Paulo TUDO estava aberto.
Ontem o sentimento era de felicidade e medo. Hoje é de medo e felicidade.
Um casal espetacular de amigos me recebeu de longe para entregar a chave do apê que me emprestaram. Junto veio uma sacola lotada de amor. Sim, amor em forma de macarrão feito com carinho, brigadeiro e até manteiga aviação pro café da manhã. Como estava precisando desse cuidado.
Existe amor pra caralho em SP. Obrigado Julinho e Gil.
Nessa hora o coração se enche de esperança. Mas o contraste não demora em dar as caras. E essa é a parte foda.
Chegando mais perto do apê, no centro de São Paulo, o motorista do Uber que estava até então conversando sobre amenidades, vê um “nóia” – vulgo possível usuário de crack – e começa a se gabar de quando ele escapou de uma tentativa de assalto atropelando três “nóias”. Eu até entendo que durante o medo a gente nunca sabe como vai reagir, você pode acelerar para fugir e acabar acertando a pessoa, mas não foi esse o caso. A parte que doeu foi ouvir ele se vangloriar que justo na hora que ele ia dar ré para “finalizar o serviço”, os homens se levantaram e fugiram.
Também existe ódio pra caralho em SP.
Felizmente cheguei bem em casa. O motorista foi embora e foquei toda atenção para minha sacola de amor. A abracei forte como se fosse uma pessoa.
Definitivamente não sou mais a mesma pessoa que saiu de São Paulo. E nem sei mensurar quantos anos de experiência couberam nesses 3 anos de vida.
Hoje assim que acordei chorei, muito. Vi pela varanda a feira-livre funcionando normalmente. Pessoas cruzando umas com as outras sem qualquer distanciamento social. Chorei porque vi o poder da ignorância propagandeada. Aquela ignorância do dicionário – “estado de quem não está a par da existência ou ocorrência de algo”. É triste que a necessidade faça a população se colocar em risco para trabalhar. Entendo isso. Ainda mais quando o governo não ajuda aqueles que mais precisam. Mas o quê não consigo entender são aqueles que possuem condições de ficar em casa e vão para rua.
Há 50 dias acompanho diariamente o combate do Covid-19 na Nova Zelândia e no Brasil. Se eu falasse que existe um abismo de distância entre os dois países eu estaria sendo generoso. A distância é a mesma entre a Terra e Marte. Ouso dizer que até mais.
A abordagem firme a empática da Primeira Ministra, Jacinda Ardern, é o que fez a Nova Zelândia se tornar um exemplo mundial. Seja na atenção dada a população, quanto na redução do número de casos.
E no dia que eles tiveram “zero casos”, a Primeira Ministra disse que o mérito todo foi da população neozelandesa.
Dá pra perceber a distância que nos separa?
Você pode dizer:
– Ah, mas o Brasil não é a Nova Zelândia, impossível comparar.
Concordo. E discordo.
O ponto que discordo não envolve estrutura, dinheiro, ou extensão territorial. Mas sim algo completamente replicável em qualquer parte do mundo. O exemplo.
O exemplo de afeto, tolerância, liderança, união e transparência.
Virei amigo da Jacinda sem nem ao menos conhecê-la. Eu quis lutar a luta dela, eu me tornei um neozelandês pelo tempo que fiquei lá. Eu evitava sair de casa pelo cuidado com o outro. Ela cortou 20% do salário no começo da pandemia para dar o exemplo. Ela valoriza o trabalho de cada funcionário que está dando a vida nos hospitais. E valoriza igualmente a população que ficou em casa, porque isso também é uma forma de salvar vidas. Ela ligou pessoalmente para cada família que perdeu alguém por conta do coronavirus. Os números são importantes. As pessoas ainda mais. Eu me senti parte de algo maior.
Nenhum lugar feliz é construído quando se tem tem o ódio como base fundamental.
O amor me trouxe de volta e é nele que vou depositar a confiança.
Hoje o sentimento é de medo e felicidade. Amanhã é de felicidade e medo.
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